Apaguei a mágoa que sentia por não ter tido meu pai como antes

Querido papai

Desejo que esta cartinha o encontre bem e em paz aí do outro lado do caminho. Já faz mais de um ano que mandei uma cartinha pro senhor. Sem falar da que mandei para o senhor e mamãe, para lerem juntos, no Natal. Peço desculpas. Não ter mandado mais uma cartinha pro céu não significa que eu não tenha saudade. Tenho, e não é pequena. Como poderia não sentir saudade do senhor, meu amor, meu ídolo e minha inspiração para gostar de trabalhar? Tenho saudade sim e muito amor.

Por que então demorei tanto? É que levou tempo para eu entender algumas coisas, entre elas, porque fiquei brava com o senhor depois do Dia dos Pais, no ano em que mamãe regressou ao lar espiritual. Lembro-me que estava na Eletrônica o senhor, eu, Tata, Toca e Sandrinha. O senhor achava que eu tinha que ir conversar com Delma, para explicar melhor o que tinha dito e gerado tanta confusão. Eu disse que não ia. Que o senhor poderia muito bem explicar a diferença entre compreensiva e mais compreensiva. 

Muito zangada, disse ao senhor que eu havia cansado de fazer o seu papel na missão de unir todos os seus filhos, os de mamãe com os de Delma. Disse, ainda, que não ia mais mendigar que o senhor fosse nos ver no final do ano porque para isso bastava o senhor querer e pedir para que um de nós fosse buscá-lo. Eu estava muito triste. Muito mesmo. Nós choramos, mas eu não quis mais conversa. Disse apenas que eu ia amá-lo sempre e que toda vez que eu fosse a Paulo Afonso eu iria vê-lo, fosse na sua casa ou na Eletrônica.

No final do ano, nova frustração. Fui à sua casa pra conversarmos e não consegui ter 5 minutos sequer com o senhor, só nós dois. Perguntei por que a gente não podia conversar só e o senhor disse "vou fazer o quê, minha filha? Pedir que as pessoas nos deixem sozinhas?". Eu respondi que sim, porque o senhor tinha direito a conversar sozinho com sua filha. Mas não foi o que aconteceu, né?

Quando o senhor desencarnou, fiquei arrasada. Roberto estranhou, perguntando por que eu não estava reagindo da mesma forma de quando foi o regresso de mamãe. Eu respondi que mamãe era nossa integralmente. Éramos amigas, mãe e filha, às vezes invertendo os papéis. Eu sabia que após tanto conversar com as filhas e ler sobre o mundo espiritual, de perdoá-lo e continuar a amá-lo incondicionalmente, mamãe estava de malas prontas. O que não significava, claro, que ela quisesse partir naquele 1ª de agosto de 2014. 

Mas, por ter acreditado na minha definição da infância de que o senhor era meu herói, e heróis não morrem, até me deixei contagiar pela ideia, ou melhor, a certeza de que o senhor era imortal. Eu ainda o via tão apegado às suas coisas, à eletrônica, que temia como seria o seu despertar no outro lado do caminho. Chorei também porque não pude, não pudemos, cuidar do senhor em algum momento, como queríamos, como fizemos com mamãe. O curioso é que eu sabia que o senhor precisava regressar. Meu cérebro havia processado a informação, mas meu coração, não. Nem mesmo ter ouvido o senhor dizer que me amava, por telefone, na véspera da sua partida, aliviou minha dor.

Então, outro dia, assistindo um filme que abordava a relação de um pai com o filho, parecida com a nossa, caí no choro. Vi que entre mim e o senhor era a mesma coisa. Ainda com a sua vida terrena sentia muita a sua falta. Eu queria que tudo continuasse como quando voltei a morar em Paulo Afonso, em 1986, quando fui trabalhar com Zé Ivaldo na Prefeitura. Naquele período pelo menos uma vez por semana o senhor ia me buscar no trabalho e sentávamos em algum canto para conversarmos, pra que eu falasse de mim, o senhor falasse de si e podermos saber como estávamos nos sentindo. Pra que a gente risse junto.

Mas, com o passar do tempo, isso foi ficando cada vez mais difícil, principalmente depois que mudei pra Salvador e ia apenas duas vezes no ano; depois que a vida lhe tirou a visão, deixando que seus lindos olhos azuis vissem apenas sombras. Eu procurava compensar ligando pro senhor e falando por um tempo. Não me importava se a conta ficasse alta. Depois, até mesmo falar por telefone ficou difícil. Sem a visão, o senhor não sabia que o celular tinha descarregado e nem sempre conseguia falar pelo telefone fixo, que dava ocupado ou chamava e ninguém atendia.

Apesar de saber da fragilidade em que se encontrava - idoso e cego, sem autonomia, eu achava que o senhor tinha que defender nosso direito de amá-lo, de abraçá-lo, sem ser com hora marcada e apenas na Eletrônica, seu refúgio. Acho que a dor que eu sentia devia ser igual ao que os outros filhos do Roseiral de mamãe sentiam. Como foi difícil, principalmente depois da partida de mamãe, só poder vê-lo na eletrônica. E quando o senhor adoeceu, doeu mais ainda, porque não conseguíamos ficar com o senhor. Os conflitos tinham voltado desde que aconteceu a formalização do seu segundo casamento sem que nenhum de nós soubesse. Sim, eu lembro que o senhor justificou e eu entendi, mas isso não tirou nossa tristeza. 

Na Semana Santa de 2017, ano em que o senhor regressou ao lar espiritual, eu quis muito ir pra Paulo Afonso, para abraçá-lo, mas Roberto achou melhor não. "Você não vai conseguir vê-lo e vai chorar", disse ele. E não fomos. Quando o vi de novo, em 4 de junho, o senhor não estava mais lá, apenas o corpo que lhe fora emprestado por quase 84 anos.  No velório, quando o padre falou da sua solidão confessada, chorei porque constatava que o senhor sentia o mesmo que a gente.  Ainda falei alguma coisa ali, mas não consegui lhe fazer uma homenagem, no sepultamento, como fiz à mamãe, à tia Neném e à tia Teca. Toca pediu que eu fizesse, mas não me senti à vontade. Como aconteceu durante tantos anos, eu sentia que tinha muitos olhos me olhando, alguns não muito amistosos. E eu não queria falar para tantas pessoas; queria ter conversado sozinha com o senhor.

Papai, não pense que é fácil falar tudo isso. Por isso adiei por muito tempo. São 5 anos desde sua partida. Eu não estava pronta e nem queria fazê-lo chorar; não queria incomodá-lo nesta sua fase exclusivamente espiritual, onde busca a regeneração das dores aqui sofridas. Mas precisava liberar de vez meu coração dessa mágoa. Hoje não choro como aconteceu em outros dias, quando eu pensava em escrever esta carta. Hoje, mais que nunca, o amo incondicionalmente. Muito, como sempre. 

Desejo de todo coração que o senhor também fique leve, que possamos restabelecer nossa conexão e, quiçá, termos uma autorização para que, enquanto o meu corpo repousa, nos encontrarmos, nos abraçarmos fortes e dizermos pessoalmente o quanto nos amamos. 

O senhor tem visto mamãe? Há três dias mandei uma cartinha pra ela e contei que finalmente vou conseguir publicar meus textos. Em breve terei lançado dois livros e estou muito feliz. Um é de poesias e outro sobre memórias afetivas da infância. Veja com mamãe os detalhes, tá? Se vir vovô João e vovó Floriza, tio Manoel, tio Mariano e seus outros irmãos e sobrinhos que estão por aí, diga que tenho saudade deles e mando um abraço.

Vou ficando por aqui, papai, com a certeza que, a partir de agora, caminharemos melhor. Eu o amo muito, do tamanho do universo.

Da sua filha tagarela,

Vanda.

 

Comentários

  1. Tenho certeza prima que todos eles se reencontraram, pois eles tinham um pelo outro, um amor puro e verdadeiro.

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    1. Acredito nisso, prima (só não sei qual, porque não entrou seu nome). Em um próximo post que quiser comentar, clique na opção " Comentar como" e escolha a opção NOME/ URL. Basta colocar seu nome e depois coloca seu comentário. Um abraço.

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  2. Marta Almeida
    Não sei se existe uma palavra para definir coragem e amor ao mesmo tempo e com igual intensidade. Se soubesse, dedicaria a você, Vanda. Sua cartinha para seu papai é tão amorosa, tão humanamente sincera e tão honrosa que nos encaminha para um agradável lugar onde o amor é sempre vitorioso. Imagino a alegria de seu papai em receber essa mensagem tão generosa, libertadora e edificante. Mantenha-se com Deus e permaneça feliz. 🤗

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  3. Saudade, uma dor que dói dos dois lados.

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